Passei boa parte do meu tempo no Kibo Hut tentando recuperar as minhas energias para a maior prova física de minha vida, que estava bem prestes a iniciar. Nós havíamos chegado ao último abrigo debaixo de tempo encoberto e tanta neblina que mal conseguia enxergar os meus passos – eu estava começando a ficar preocupado com essas mudanças climáticas repentinas, mas segundo os guias isso tudo era completamente normal. Fazia muito frio, minhas pernas e extremidades corporais estavam inchadas e por mais que bebesse toda a água daquele abrigo, ainda parecia que estava com sede.
Esses eram sinais aparentes que meu organismo apresentava devido à altitude extrema sem a devida aclimatação necessária: 4 dias para o ataque ao cume pareciam verdadeiramente muito poucos. Me enrolei em meu saco de dormir e tentei repousar um pouco, desde que a caminhada pelo deserto alpino havia sido realmente muito desgastante – comecei a sofrer com câimbras e estava muito agitado, sequer conseguia pregar os olhos, ficava escutando o barulho na janela daquele forte vento que vinha direto do cume da montanha.
Nosso almoço foi uma bela macarronada às 4 da tarde, acompanhada de muito chá e líquidos em geral. É importante relembrar que não foi permitido levar refrigerantes, água com gás ou qualquer tipo de lata e garrafa plástica, então quando a sede se manifestava a única alternativa era tomar a água fervida da montanha, servida em pequenos squeezes de metal (quentíssimos) que também ajudavam a controlar o calor dentro do meu saco de dormir. Parecia que os dedos dos meus pés queriam congelar a todo instante, mesmo calçado com 3 pares de meias.
Estávamos expostos ao frio polar, sensação térmica abaixo de zero nos mais de 4.730 metros de altitude em que estão localizados os abrigos Kibo. Ao menos até então tínhamos o abrigo para proporcionar algum conforto. Deitamos novamente às 5 da tarde e logo vieram os guias para nos passar o último briefing antes de nos aprontarmos para o ataque ao cume – era preciso repousar, tentar dormir de alguma forma, desde que partiríamos na mesma noite para a última caminhada, que nos levaria até o topo.
Coloquei meu relógio para despertar às 11:30 da noite, afim de tentar minimizar a correria da preparação para a partida. Pontualmente à meia noite nós saímos do abrigo rumo à escalada final, e daí eu compreendi os motivos de terem apelidado o Kilimanjaro como Montanha da Lua – caminhamos por 6 horas à luz da lua antes que o sol rompesse no horizonte.
Era preciso ir o mais devagar possível, entretanto, como estaríamos expostos ao frio intenso da madrugada, caminhar lentamente estaria expondo-nos ao risco de congelar as extremidades dos nossos organismos (tal como as mãos e os dedos dos pés!) Era preciso ritmo, porém a falta de ar proporcionada pela altitude era justamente quem impunha o ritmo da caminhada. Nunca em toda minha vida senti as minhas pernas tão pesadas, a ponto de não responderem aos meus estímulos dos meus músculos e à ordem que meu cérebro dava de que era preciso puxar e empurrar mais uma vez a fim de dar o próximo passo.
Nós caminhamos ziguezagueando a montanha por 500 metros até encontrarmos a Caverna Hans Meyer (5.150 metros de altura), o local perfeito para um das paradas mais longas. Ainda era noite, quando alcançamos os mais de 5.000 metros e meu estômago parecia uma sacola de plástico cheia. Em um lapso de segundo essa sacola foi comprimida pela ação da altitude e vomitei mais de 7 vezes até alcançar o Gilmas Point, localizado a 5.681 metros de altitude.
Gilman’s point – 5.681 metros de altura – Kilimanjaro
Nesse ponto eu já me considerava um vitorioso! Eu caminhei da meia noite até as 6 da manhã no meio do escuro, com várias camadas de roupas, apenas com uma lanterna na minha cabeça, ziguezagueando no meio de uma trilha estreita que me levou ao encontro daquela mancha de neve branca que consegui avistar antes de chegar no Kibo. Uma mancha que se transformou em uma das mais espetaculares paisagens que meus olhos já conseguiram avistar na face desta Terra.
Sem aclimatação prévia, nossos organismos estavam reagindo muito bem à altitude – o grande problema era o peso das pernas. Eu dava apenas alguns passos e já me sentia totalmente esgotado – eu mal conseguia caminhar quando um dos guias se ofereceu para me apoiar na caminhada até o Pico Uhuru, lugar considerado o ponto mais alto da África, nosso objetivo principal nessa empreitada. Eu recusei o convite e continuei com meus passos lentos rumo ao topo. Era verdadeiramente uma dificuldade extrema, eu sentia o peso de vários sacos de cimento nas minhas costas, porém cada alpinista que passava me dava um belo sorriso e mandava eu continuar até o topo. Essas palavras eram fundamentais para a minha conquista.
Enquanto meu organismo se esforçava em uma das atividades mais desgastantes à qual já fui experimentado, minha mente só pensava no meu velho finado pai. A todo momento eu lembrava do sofrimento dele em hospitais, a dependência física que ele teve no final da sua vida e como ele foi forte para superar tudo até o seu último suspiro. Não seriam esses mais de 5.500 metros de altura que me parariam naquele momento – minha mente estava mais determinada nesse ponto do que meu próprio organismo.
Visual nevado, deserto e repleto de geleiras no topo do Kilimanjaro
Nosso grupo teve que se separar pois eu realmente estava fazendo tudo muito lentamente – eu precisava sentir que estava em boas condições físicas antes de atacar o topo. Ficamos eu, a Marina e um guia para trás. O Diogo teve que disparar na frente com o outro guia pois começou a sentir fortes sintomas de hipotermia – suas mãos estavam rochas e já não conseguia mais sentir os dedos dos pés (assim como eu também já não mais sentia os meus!). Enquanto eu ainda estava no Gilmas, o Diogo e o outro guia já se aproximavam do objetivo final: o topo da África. Na foto seguinte você pode conferir três pontinhos rumando para o Uhuru, eu ainda estava a no mínimo uma hora do topo, e já havia caminhado por mais de 7 horas montanha acima – EU PENSEI EM DESISTIR A TODO MOMENTO, mas FUI MAIS FORTE E SEGUI EM FRENTE, contrariando até mesmo os limites do meu organismo.
O principal incentivo nesse ponto era tudo aquilo que minha retina conseguia registrar. Em certos momentos eu não acreditava que estava naquele ambiente hostil, tudo parecia um grande sonho – ter cruzado florestas tropicais, me metido no meio da mata varzeana, rompido por trilhas em um deserto alpino e agora, caminhando no meio do gelo, pisando em blocos de neve dura como pedra e apreciando os fantásticos glaciares que me rodeavam por todos os lados. Esse era o meu ataque ao cume do Monte Kilimanjaro e sinceramente eu não poderia ter chegado a esse lugar com maior preparação física, psicológica e emocional.
Caminhando até o topo da África
Sem olhar para trás, deixei cada um dos quilômetros que me distanciavam do topo da África e alcancei o Uhuru às 8 horas da manhã. As condições climáticas eram os fatores determinantes para o meu tempo de permanência no topo – inclusive não recomenda-se mais do que 20 minutos ao lado da placa da montagem a seguir. Quando enfim alcancei o topo da África, abaixei a minha cabeça e agradeci a Deus, ao meu pai, à minha mãe e todos aqueles que de uma forma ou de outra me motivaram nessa caminhada em busca de redenção, conforto emocional, superação e principalmente em busca de compreender um pouco melhor sobre esse nosso planeta tão diverso.
Pico Uhuru – Kilimanjaro – África – 5.895 metros de altura
Ali nos 5.895 metros de altura, eu me senti mais próximo do Criador, eu me senti como um grão de areia no deserto do Saara, uma pequena poeira cósmica em meio à grandeza de todo universo. É preciso sentir a intensidade do frio para dar verdadeiramente valor aos dias de calor intenso. É preciso conhecer quais são os limites de seu organismo para compreender que sua mente é capaz de impôr milagres e superações até então inimagináveis. Quando eu falava que iria subir o Monte Kilimanjaro, muitos riam, acreditavam que nunca conseguiria tal façanha. Pois aqui deixo o registro de que SIM, eu CONSEGUI. O limite do meu organismo está na distância em que minha mente gostaria de chegar. NUNCA PARE DE EXPLORAR!
Paisagem no topo do Kilimanjaro
Depois da conquista, era hora de começar a descida. Mais 3 horas de caminhada até o Kibo, onde descansaríamos para continuar nosso trajeto até o Horombo, lugar onde passaríamos a noite antes de descer completamente até os portões da Rota Marangu. Era hora de comemorar, compartilhar a felicidade com os guias e bonificá-los financeiramente pelo árduo trabalho de nos guiar até o topo da África. Além dos U$ 1.000,00 que cada um de nós pagou para o pessoal do Safari Porini, ainda tínhamos que pagar as gorjetas de cada um dos integrantes da equipe (algo em torno de U$ 200,00 por pessoa) – foram em torno de U$ 3.600,00 de investimento para conseguir levar hoje em minha memória os aprendizados que só a Montanha da Lua pode ensinar.
Eu ainda me recordo do grosso que ficou na minha garganta depois do segundo vomito de uma série de 8, logo que meu organismo alcançou pouco mais de 5300m de altitude. Eu confesso que pensei em voltar para trás. Durante 5 dias percorri a Rota Marangu que me levou da cidade de Moshi na Tanzânia até o Kibo, ou Pico Uhuru no Kilimanjaro, em uma trilha tentada por mais de 15.000 pessoas anualmente, mas que apenas 30% conseguem definitivamente chegar até o chamado “Topo da África”, localizado a 5895m do nível do mar.
Para quem estava a uns 40 metros abaixo das águas do Índico em Zanzibar, acredito que vomitei muito pouco. E me aclimatei muito pouco, apenas 4 dias para um roteiro que comumente é feito em 6. Vivenciei muita chuva, sol escaldante, frio polar, neve, ventos com velocidades impressionantes em tantos ambientes que mal consigo transcrever com a restrição de palavras: é preciso viver definitivamente. Por mais de um milhão de vezes eu pensei em trocar essa caminhada por um fim de semana numa balada top, ou desfrutando de qualquer resort africano. Mas hoje, quando olho as fotos e me recordo da intensidade das câimbras que sofri, fica aquele sentimento bom de dever cumprido. De que, com minhas próprias pernas e um bom grupo é possível SIM conquistar, ir além, se MOVA!
Mérito em honra à memória do meu velho finado pai, Geovando Luiz Fernandes, aquele que foi, É e sempre será meu maior exemplo de motivação, perseverança e determinação.
Trekking ao Topo do Monte Kilimanjaro – Tanzânia